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Aquilino Ribeiro

Primeiro andamento

A topografia
da Beira Alta.

Aquilino Ribeiro nasceu no dia 13 de Setembro de 1885, no Carregal, concelho de Sernancelhe, filho de Mariana Rosário Gomes e de Joaquim Francisco Ribeiro, numa região serrana marcada pela terra sáfara e agreste, e que anos mais tarde tornou-se o fulcro da sua obra literária.

Consta que os seus pais decidiram crismá-lo com o nome de Aquilino por ser o santo venerado no calendário litúrgico, no dia do seu nascimento. O que é certo é que para além da origem hagiográfica, a sua etimologia de raiz latina vem do nome genitivo “águia”, e isso parece associar-se inexoravelmente com a expressão exuberante da sua vida e obra. E, certamente não por caso, com a paisagem que o viu nascer e que se colou à sua escrita com a denominação de Terras do Demo, topónimo que o escritor batizou com o nome agora indelével.

A ela dedicou o seu terceiro livro dado a público, caracterizando-a como o cenário “dessas aldeias montesinhas que moram nos picotos da Beira, olham a Estrela, o Caramulo, a cernelha do Douro e, a norte, lhes parece gamela emborcada o monte Marão” (Terras do Demo, 1919, carta a Malheiro Dias). Acrescentou que nela “sem dúvida, nunca Cristo rompeu as sandálias, passou el-rei a caçar, as os apóstolos da Igualdade em propaganda”

Sempre encalço desta topografia beirã consagrou um conjunto de obras que António Valdemar intitula de “O Quinteto da Beira”: Os Avós dos Nossos Avós (1943); “Aldeia” (1946); Geografia Sentimental (1951); “Arcas Encoiradas” (1953), e “O Homem da Nave” (1954). Correspondem a récitas rurais que ressaltam o quotidiano agreste das serranias, as personagens e a respectiva tessitura dramática de que a sua obra está cheia, tão universais pela humanidade em que são talhadas e, simultaneamente, tão impregnadas de sabor genuinamente beirão, que permanecem atuais como no momento em que foram criadas.

Mas manifestam mais fortemente a reprodução de episódios sobre o domínio de interioridade, onde as expressões geográfica, antropológica, arqueológica e histórica parecem verter com notável mestria uma extensão erudita dos trabalhos de Orlando Ribeiro ou de José Leite de Vasconcelos, este último de quem, aliás, era amigo, e a quem dedica o prefácio do livro “Os Avós dos Nossos Avós”. E ainda o pendor dos almocreves que faziam a ligação entre o interior e o litoral, e que parece corresponder aos traços que identificam essa personagem a que deu o nome de Malhadinhas.

Também o reflexo singular das Terras do Demo encontra-se perdurado através de um encadeado de romances autobiográficos, que nos falam da memória afectiva da infância e adolescência nos planaltos e nas faldas das serras da Nave e da Lapa: “Cinco Réis de Gente” (1948), “Uma Luz ao Longe (1948) e “Via Sinuosa” (1918).

No fundo, esta beira serrana a que sempre manteve uma duradoura afinidade, mesmo quando transportou o seu porte e a seiva para a cidade, foi a sua mais forte inspiração que lhe permitiu continuar a criar até ao fim dos seus dias como se lhe “penetrasse um ardente e fecundo Verão”.

"A vida apaixonou-me sob todas as formas. Sobretudo pelas formas insignificantes que não chamavam a atenção dos outros"

Aquilino Ribeiro

Segundo Andamento

O mundo para
além das faldas
do Demo.

Aquilino Ribeiro viveu nas cidades de Lisboa e Paris os primeiros e grandes pecados, a aprendizagem da cultura cosmopolita e libertária e o toque de graça que o fez escritor.

Certamente não por acaso, nos cenários urbanos tornou-se revolucionário por natureza e acção (Maria Alzira Seixo, 1985) e despertou para um admirável mundo vivendo-o intensamente “sem medo de passar por utopista, de construir nas nuvens, de arquitectar repúblicas imaginárias” (Aquilino Ribeiro, 1939).

Em Lisboa, no dealbar do século XX, o aceno das correntes revolucionárias, ávidas de destronarem ditadura de João Franco, levaram-no a ingressar na Carbonária e a participar ativamente na atmosfera conspirativa que ecoava nas ruas.

O seu livro de memórias, “Um Escritor Confessa-se” (1974, edição póstuma) e o romance “Lápides Partidas” (1945), falam-nos destas geografias revolucionárias, dos seus cenários e projeções sociais. A deriva residencial parece inferir um sentido imanente e categórico que caracterizava a atmosfera conspirativa que ressoava na cidade de Lisboa e, sobretudo, as tributárias cartografas insurgentes que impregnavam os seus territórios.

O seu roteiro de andarilho, de fugas e de exílios (Maria Alzira Seixo, 1985) conduz-nos à geografia parisiense e à aprendizagem do valor absoluto da cultura cosmopolita. Aquilino encontra na cidade de Paris o mais belo abrigo da sua mocidade. Rapidamente o jovem libertário parasianisara-se o mais que pudera (Jorge Reis, 1988) e o seu território emocional constitui o cenário privilegiado para a narração da sua escrita.

Reside onde a sua carteira lhe permitiu, mas sempre próximo dos lugares que lhe ajudaram a formar-se como um homem do mundo, aberto aos sabores da aprendizagem permanente, conhecendo e estudando profundamente os escritores, poetas e artistas plásticos, assumindo-se como um “geógrafo urbano” no mais apurado sentido do termo, pela forma como pontuou o ritmo da sua escrita na descoberta de uma cidade inquieta. Depois de alguns meses em Montmartre o seu ritmo acercou-se da montanha apocalíptica do Pantheón, onde viveu alguns anos, na Rua Descartes, uma “rua estreita do tempo dos prebostes”. Frequenta com amor os cursos magistrais da Sorbonne, abanca pelos Cafés do Boulevard St. Michel e anda por antiquários e museus em encantada romaria.

Na biblioteca Ste-Geneviève, à ilharga do Phanthéon, compõe boa parte do “Jardim das Tormentas” (1913), o seu volume de estreia, travando ainda relações com Xenofonte, mas o que mais lhe perscrutou a atenção foram as mais lindas raparigas das cinco partes do mundo que ali se reuniam. “Quem as apartara para aquela sala ou como acontecia tão especioso fenómeno?”, interroga-nos voluptuosamente em “Abóboras no Telhado” (1955).

A colaboração com a imprensa portuguesa tornou-se num necessário empenho para aumentar os seus rendimentos, já que o curto pecúlio que o pai obtivera de um tal “Sebastião da Tabosa” a troco de 7% de juro” (Jorge Reis, 1988) esgotara-se de uma só penada. Publicou, assim, um conjunto alargado de “crónicas” e “noveletas” para a imprensa lisboeta, e ainda um conjunto atraente de “cartas de Paris” para o periódico viseense “A Beira”, onde assina com um singelo “Aq. Rb”.

Mas o ritmo dos exílios foi também marcado pelo modo como cartografou a geografia dos afectos de uma forma intensa e radiosa, dando destaque aos pronunciamentos das suas paixões ocasionais e, particularmente, aos dois amores que marcam a sua vida, e a quem dedicou as mais belas paisagens da sua oficina literária.

O primeiro regresso de Aquilino a Lisboa dá-se com o eclodir da execranda Primeira Grande Guerra. O beirão viveu com a sua primeira mulher, Grete Tiedemann, entre o Campo Grande e Santo Amaro de Oeiras. Tornou-se professor da Secção de Letras do Liceu Central de Camões e ingressa, a convite de Raul Proença, como segundo bibliotecário para a Biblioteca Nacional de Lisboa. Faz parte do grupo que lança a “Seara Nova”, a revista de doutrina crítica que “emerge no difícil contexto “Nova República velha” pós-sidonista”(Francisco Roque de Oliveira, 2019).

A obra literária de Aquilino começou então assentar os seus fundamentos num aedo de vocação continental, parafraseando David Mourão-Ferreira, com dois volumes na década de dez – os já referidos: “A Via Sinuosa” (1918) e “Terras do Demo” (1919) – e outros três da década seguinte: “Filhas de Babilónia” (1920), “Estrada de Santiago” (1922) e “Andam Faunos pelos Bosques” (1926). Neles intercalou outras publicações, como aquela que integrou o número oito da revista “Contemporânea”, em 1923, e que reproduz passagens de “Inversão Sentimental”, conto incorporado em “O Jardim das Tormentas”, tão fiel a certas tinturas do cosmopolitismo (Alfredo Margarido, 1985).

O regime republicano entrava então no seu ocaso. Implicado na revolta contra a Ditadura Militar, que eclodiu no Porto a 3 e em Lisboa a 7 de Fevereiro, foge à perseguição policial exilando-se novamente em Paris.

Depois, quando o Estado Novo veio substituir o antigo Estado, em cujas leis, moral, clima político nasceu e se formou Aquilino Ribeiro, já este passara o equador da vida e tinha realizado uma parte da obra. Casara, entretanto, com a sua segunda mulher, Jerónima Machado, residindo uma longa temporada na Cruz Quebrada, depois na Avenida dos Defensores de Chaves, e, finalmente, no Bairro de São Miguel, em Alvalade.

Mas a sua formação libertária e os princípios republicanos que constituíram a sua personalidade literária mantiveram-se inalteradas, conforme ficaram patentes na luta cívica e democrática da candidatura de Humberto Delgado, ou na corajosa escrita do romance “Quando os Lobos Uivam” (1958), que lhe valeu a perseguição da mesa censória e um processo que habilita o Tribunal Plenário a infligir uma pena até oito anos” (Alfredo Caldeira e Diana Andringa, 1994).

Esta primazia de pensamento livre intensificou-se no inverno da sua vida. A sua produção literária tornara-se, então, entusiasticamente fecunda e sublime na sua qualidade. “Era um sedentário obviamente contente com a sorte”, como alude Mário Cláudio, “só esta lhe possibilita na verdade a pertinácia da escrita, o aconchego da tribo e a frequência dos alfarrábio, tarefas que o não desmobilizam entretanto para as canseiras da cidadania”.

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A 13 de Setembro, na aldeia do Carregal, nasce Aquilino Ribeiro

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A 27 de Maio, morre Aquilino Ribeiro, no hospital da CUF, em Lisboa

Terceiro andamento

Aquilino e
o Alto Minho.

Aquilino Ribeiro enamorou-se pela Quinta de Nossa Senhora do Amparo, já no entardecer da sua vida, quando pelas partilhas calhou à sua mulher, Jerónima Machado, o conjunto das suas propriedades.

Conta a esposa do escritor o seguinte episódio: “apesar do apego à Soutosa, na Beira Alta, Aquilino apaixonou-se pela Senhora do Amparo em Romarigães. Se soubesse não o tinha levado lá. Quis ficar com aquilo. Nada o demoveu”.

Com esta deriva da sua geografia sentimental, Aquilino desenvolveu um amplo trabalho de reaproveitamento e restauração do edificado que então se encontrava praticamente em ruína, conforme nos confessa nas suas “Arcas Encoiradas” (1953):

“No antigo solar dos Montenegros e Meneses prosseguem as obras. As ruínas vão perdendo o ar calamitoso que cortava a alma. Quando armará a banca o construtor das nuvens?” (Arcas Encoiradas, 1953).

Mas a descoberta minhota deu-se muito antes deste enlevo tão duradouro. Na verdade, tudo aconteceu no ciclo dos seus exílios, quando em 1931, já casado com Jerónima Machado, e pai pela segunda vez, reside inicialmente em Vigo e depois na cidade raiana de Tui. Então, com as margens do rio Minho, e o sabor alcandorado de Valença, enquadra o último dos contos da Arca de Noé III Classe (1936), “História do Burro com rabo Légua e meia”, e que dedicou ao seu filho mais novo:

“Ora nas abas da mui antiga vila de Valença, à beira do rio Minho, o que se chama à beirinha, possuía o moleiro um campo para onde costumava soltar o jerico a pastar. A erva era tenra, bem medrada e verde verdinha; crescia onde devia crescer e também nas margens, tão rente à água, que a corrente a afagava e anediava como a cabeleira desatada.”

Regressado a Portugal, o perfume do Alto Minho e da Galiza chegou-lhe através dos tempos de vilegiatura, quando a família passava férias na praia de Moledo e no Hotel del Tecla, em La Guardia, juntamente com os seus sogros, Elzira Dantas Machado e Bernardino Machado. Foi deste recanto galego que, em 1933, Bernardino lhe escreveu uma carta incitando-o a descobrir as preciosidades paisagísticas de Paredes de Coura:

“E veria de passagem o nosso Minho, de que devia certamente gostar muito, digo-o sem desfazer na sua Beira. Na volta poderia mesmo ir com a Gigi e o Lininho até Paredes de Coura, da qual dizia o poeta António Ferreira da Cunha, a quem Castilho ofereceu o livro terceiro das Geórgicas, que sendo o que há de melhor em Portugal e sendo Portugal o que há de melhor na Europa e a Europa o que há de melhor do mundo, é sem dúvida alguma a preciosidade maior de todo o mundo”.

Uma descoberta que só ocorreu em 1935, já estava o decano da Primeira República no exílio forçado na Corunha. Encontrava-se, então, a família a passar umas férias na praia de Moledo do Minho e Aquilino foi ao seu encontro, e daí seguiram para a Casa de Mantelães, em Formariz, Paredes de Coura, lugar de vilegiatura campestre, onde a família Dantas Machado passava uma boa parte das férias de Verão.

Mesmo no ocaso da vida dos seus sogros, quando o chamado Estado Novo fixara residência permanente a Bernardino Machado no norte do Douro, passando então residir em Mantelães, este lance paisagístico continuou a aprimorar gratas memórias para família de Aquilino. Aí gozaram o aroma evanescente de alguns dias de Verão campestre aproximando-se progressivamente da geografia sentimental que consolidaram anos mais tarde na Casa Grande de Romarigães.

Era o início de uma imarcescível aventura sem fim.

Autoria de Aquilino Machado.

Aquilino Machado, Verão de 2023 (*1)

(*1) – “Aquilino Ribeiro. Um homem e a Obra” adapta três outros textos escritos por Aquilino Machado: “Mantelães, uma geografia sentimental de Elzira Dantas Machado” (2022); “Aquilino e o Modernismo” (2020) e “A Geografia Emocional e Literária em Aquilino Ribeiro” (2016); bem como um outro texto da autoria de Aquilino Ribeiro Machado: “O Alto Minho de Aquilino Ribeiro” (2010).

Referências Bibliográficas

Alfredo Caldeira & Diana Andringa (1994). “Em Defesa de Aquilino Ribeiro”. Lisboa: Terramar

Alfredo Margarido (1985). “A aldeia, centro vital da visão do mundo de Aquilino Ribeiro”. Revista Colóquio Letras, nº 85, Maio de 1985. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian (32 -42)

António Valdemar (2014). Aquilino: “Cem anos de Consagração”. Revista “O Escritor. Lisboa: Associação Portuguesa de Escritores (175 – 189)

David Mourão Ferreira (1985). Notas sobre a continentalidade de Aquilino. Revista Colóquio Letras, nº 85, Maio de 1985. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian (73-80)

Francisco Roque de Oliveira (2019). “Aquilino, anos 20: entre o exílio e as geografias de Lisboa. Lisboa: Brochura da Exposição, Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal

Jorge Reis (1988). “Aquilino Ribeiro, páginas de exílio. Cartas e Crónicas de Paris. – 1927 a 1930.  Lisboa: Vega, Vol. 1

Maria Alzira Seixo (1985). “O exaltante poder”. Revista Colóquio Letras, nº 85, Maio de 1985. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian (22 – 31)

Óscar Lopes (1985). “Um lugar de nome Aquilino”. Revista Colóquio Letras, nº 85, Maio de 1985. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian (5 -14)

Obras de Aquilino Ribeiro. Edições citadas:

Aquilino Ribeiro (2008). “Um escritor confessa-se”. Lisboa: Livraria Bertrand

Aquilino Ribeiro (1955). “Abóboras no Telhado”. Lisboa: Livraria Bertrand

Aquilino Ribeiro (1938). “Por Obra e Graça”. Lisboa: Livraria Bertrand

Aquilino Ribeiro (1936). “Arca de Noé III Classe”. Livraria Bertrand.

Aquilino Ribeiro (1919). “Terras do Demo”. Lisboa: Livraria Bertand

Aquilino Ribeiro (1913). “Jardim das Tormentas”. Paris: Aillaud & Paris

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